O ICHS e eu

Igrejinha do ICHS - Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP


Com 18 anos eu engravidei e não tinha completado ainda o segundo ano do Ensino Médio. Estudei a vida inteira em escolas públicas, sou nascida em Ouro Preto, mas vivi até os 11 anos em Ipatinga, quando retornei para a minha cidade natal. O meu pai era operário em Ipatinga e a minha mãe, empregada doméstica, mas meu pai ficou desempregado e, depois de venderem a casa, voltamos para Ouro Preto e nos amontoamos na casa da minha avó, onde já havia quatro pessoas morando. Vivemos tempos difíceis, falta de comida e de elementos básicos para a sobrevivência; uma vez, parei de estudar porque estava com vergonha de voltar às aulas e não ter dinheiro para pagar um livro de português, que tínhamos que comprar porque o governo ainda não oferecia esse material. As professoras mandaram-me recados, mas não voltei naquele ano.

Por duas vezes parei de estudar no Ensino Fundamental, a minha mãe não se importava muito.  Parece que ela tinha em sua mente um lugar ao qual nós pertencíamos e a impossibilidade de transposição daquela situação. Depois de engravidar e me casar, o meu desejo de voltar aos estudos cresceu; o meu filho foi para a escolinha à tarde e eu fui terminar o Ensino Médio durante esse horário, com a ajuda das profissionais e vizinhas da escolinha, que acolheram o meu filho até que eu chegasse. Quando terminei o Ensino Médio, ousei em pensar na Universidade. Eu não sabia nada sobre o processo, mas fui em busca e me inscrevi, era 2002; na época o ingresso era a partir dos vestibulares, milagrosamente eu passei na primeira chamada, em último lugar. Último lugar, na primeira chamada, significava muito naquela época em que não havia quase nenhum ouro-pretano na Universidade Federal de Ouro Preto. Quando fui fazer a matrícula, tudo presencialmente, as atendentes se assustaram por eu ser ouro-pretana. Isso era triste. Eu fui a primeira pessoa de toda a minha família a entrar para a universidade.

Eu e a "Tia Isabel", no primeiro ano em Ipatinga.


Escolhi Letras porque sempre gostei de escrever. Eu não sabia o que me esperava, nunca tinha ouvido palavras como Léxico, Episteme, e tantas outras que prejudicaram o meu aproveitamento inicial. Sempre fui silenciosa e tinha dificuldades para me comunicar, além de tudo, eu era a única casada e com filhos naquela sala, o que me fazia sentir uma alienígena. Apesar das dificuldades, lembro-me da nossa memorável apresentação do último canto de "Os Lusíadas", em que levamos frutas e flores para simular o banquete da vitória. Eu ainda fiz um cartaz com um desenho de Camões abandonando sua suposta namorada chinesa no mar para salvar os seus originais. A professora era a Dulce* e aquele dia ficou na história, por algum tempo, ao menos. Lembro-me do professor Aldo, que nos fez gastar rios de dinheiro no xerox, no primeiro período; recordo-me das aulas acalouradas de Literatura, em que a professora Cláudia discutia sobre Guimarães Rosa com o Júnior Camilo, uma mente brilhante. Também recordo-me de situações de surtos de alunos acalmados pelos professores, de protestos, dos cachorrinhos, do coral de francês da professora Madalena e de muitas outras situações.

Foto de foto da apresentação do Canto X de Os Lusíadas


Eu estava no último período e estava me separando, já com dois filhos. Eu não tinha dinheiro para sair de Ouro Preto e ir para Mariana, e não sabia sequer se existiam auxílios naquela época, decidi trancar. Naquele tempo, a matrícula era feita presencialmente em umas três etapas, e eu tinha começado a trabalhar como contratada na UFOP; na minha ingenuidade, pensei que poderia trancar sem renovar a matrícula, já que o período de trancamento era posterior ao de matrícula, mas fui desligada da UFOP. Tentei o recurso, mas não consegui retornar, aquilo me trouxe uma grande dor.

Depois de alguns anos, trabalhando na prefeitura como auxiliar administrativo em uma escola, decidi fazer o Enem e terminar o meu curso. Eu trabalhava de 7h até as 17h, de segunda a quinta, no distrito de Rodrigo Silva em que não havia transporte para voltarmos. Pegamos muitas caronas perigosas nessa época. Foi a primeira vez que dormi em uma aula, à noite. A professora Elzira, se não me engano, disse que ia pedir para trocarem as lâmpadas para que ninguém mais dormisse nas aulas dela. Esse foi um longo período de sofrimento mental e físico, em que utilizei os serviços psicológicos da Universidade. Nessa época, desisti da licenciatura porque vi professores ótimos saindo em prantos das salas de aula e tudo o que eu queria era me formar logo e ter um curso superior, fui para a tradução.

Voluntária na educação

Fui aprovada como auxiliar de biblioteca no IFMG e comecei a trabalhar do meio dia às 19h. Não conseguia chegar ao ICHS às 7h30, levava faltas. Uma vez, me assustei quando o professor José Luiz me disse que eu já teria sido reprovada por frequências e fiz o que mais odeio na vida, chorar na frente de qualquer um, principalmente de alguém com quem não tenho intimidades. Ele me consolou e me deu um trabalho para abonar as faltas, nem sei se prestou. Essa atitude talvez tenha salvado a minha vida acadêmica. 

Finalmente graduada!


Depois de muitas idas e vindas, e de muito tempo, consegui, finalmente, me formar, em 2016. Em 2017, já casada e com cinco filhos, dois meus e três do meu marido, consegui entrar para o mestrado em Letras e defendi, com a orientação do professor William Menezes,  a dissertação que analisava os discursos de ex-internas da FEBEM de Ouro Preto. Lá, encontrei minha querida colega da primeira entrada no curso de Letras, a Niceia (adoro esse nome). Professores brilhantes, como o Emílio, nos ajudaram a expandir a consciência. Apesar do trabalho enorme que me deu, foi um dos períodos mais produtivos da minha vida acadêmica. 

Neste tempo, consegui publicar dois livros, um pelo Edital 50 Anos da UFOP e outro pela Editora IFMG, em que trago diversos contos, crônicas e reflexões que tive durante essa trajetória; gosto, particularmente, no livro "Mulher Alienígena", de "Uma mosca na aula de linguística" e "Um dia de fúria de uma mulher", um conto sobre um momento de uma aula, e outro sobre o sentimento de ser mulher com toda a pressão em que vivemos.

Voluntária na educação


Nessa trajetória, conversando com meu marido, que é professor de história e doutorando na Educação, fortaleceu-se o meu interesse por essa área. Decidi voltar para a licenciatura, mas, como sempre, retorno em mudanças de currículo, o que dificulta tudo. Já na primeira disciplina, MIF (Módulo Interdisciplinar de Formação), com o professor Fernando, desenvolvemos um belo trabalho que resultou em um lindo livro. Participei do Programa de Residência Pedagógica e estou no Projeto de Extensão do Nucli (coordenado pela professora Anelise), bem mais ativa que em qualquer outra época que por aqui estive. Pretendo me formar neste período, finalmente. Desta vez, conheci professoras que realmente estão interessadas na educação e na formação de professores, como a Rita, a Ada e a Ivanete. Na disciplina de estágio, tive a oportunidade de desenvolver, com alunos e o professor, um trabalho interessante que ainda precisa de edição.


Voluntária na educação


Nesse tempo, em que estou terminando a licenciatura em Língua Portuguesa, tentei duas vezes ingressar no doutorado em Educação, sem sucesso. Essa história eu conto em outro texto, aqui neste blog. Aguardo o Doutorado em Letras, em que poderei tratar de assuntos que abranjam a linguagem, os discursos e a educação.

Voluntária na educação

Resumindo, eu já vivi muitos sentimentos dentro do ICHS, sentimentos de raiva, inadequação, tristeza, alegria, esperança, e, principalmente, de entusiasmo pelo conhecimento; muitas vezes, como agora, daqui dos meus 48 anos, sinto-me cansada da rotina pesada, de toda a luta travada até aqui, penso em desistir e sinto que tudo é inútil, porque não tenho experiência na docência, tenho idade avançada e talvez não consiga mudar de profissão; sinto que tantas atividades estão sugando a minha alma  e que não conseguirei sobreviver, mas então eu venho, mesmo que exausta, e vejo a professora falar sobre a Literatura e sinto alguma coisa novamente, o prazer de conhecer. Hoje, em que estão celebrando as memórias do ICHS, eu me sinto fazendo parte dessa história e tenho orgulho de pertencer a essa instituição. Obrigada.

*Cito apenas alguns de tantos professores memoráveis, os chamo apenas por seus primeiros nomes, como nas memórias íntimas daqueles que por lá passaram.

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