Uma alienígena na banca de doutorado

 

Imagem criada pelo Bing

A "alienigenice" não me abandona, embora eu queira escondê-la, disfarça-la, nega-la sublima-la. Sobreviver em um planeta inóspito para os neuroatípicos dói, mesmo depois do alívio de perceber que há outros como eu por aí e que nossa forma de sentir, sorver e compreender tudo o que nos cerca faz parte de algo que já é conhecido e descrito pela medicina e que é a verdade de muitos; não estar só na esquisitice e na inadequação traz um pouco de conforto, mas não nos livra dos julgamentos e das barreiras que o "ser" inadequadamente implica.

Embora eu tenha desenvolvido habilidades de analisar discursos, linguagens, expressões, quando preciso me expressar ainda sinto-me completamente incompetente. As áreas acionadas pelo cérebro em cada ação funcionam de maneiras diferentes, mas os seres humanos que se relacionam conosco não querem saber de nada disso, apenas apreendem a inabilidade daqueles com quem estão interagindo. Por milhares de vezes, chamaram-me de doida, estranha, metida, emburrada, esquisita, calada, tímida, robô, insensível, antissocial (a lista se alonga), pois nunca soube expressar o que sentia, nem tampouco me comovia pelas mesmas causas que a maioria dos mortais. Tenho dificuldade de manter relações, e isso não é falta de sentimento, pois tudo me dói. Talvez a dor seja um dos motivos que me afastam das pessoas, quanto menos me relacionar, menores dores sentirei.

O espectro alienígena não me prejudica apenas nos relacionamentos íntimos, mas, também, em todo o resto, já que a capacidade de me expressar oralmente, teoricamente, diz sobre o nível de minhas capacidades intelectuais; perdi a conta de quantas vezes a minha inteligência foi subjugada, de quantas vezes se espantaram por eu conseguir isso ou aquilo, de quantas vezes as pessoas se surpreenderam com alguns feitos que consegui. Uma mulher esquisita, como pode! Porém, ainda sigo sendo prejudicada por minha inabilidade de me comunicar oralmente.

O último baque aconteceu agora, num processo de seleção de doutorado; milagrosamente, o meu projeto foi um dos três selecionados pelo orientador, fiquei esperançosa, pois a minha nota era igual a de um e apenas um ponto menor que a do outro. Na entrevista, fui péssima, apenas eu e uma outra candidata do mestrado, em todo o processo, tiramos 3,5, derrota. O que me deixou mais chateada, foi a discrepância entre a nota do projeto e a nota da entrevista, o que sinaliza que algo deu muito errado com a minha fala. No momento da entrevista, o avaliador disse mais ou menos isso:

_Quando entrevistamos alguém, a expectativa é a de que o projeto saia melhor do que entrou, e você apresentou coisas que não estavam claras no projeto. 

Essa fala me deu esperanças, mas ela quis dizer exatamente o oposto do que pensei, ou seja, eu, na verdade, não fui capaz de defender o meu projeto cuja relevância eu sei que possui.

O processo tinha vagas para PCD (Pessoa com Deficiência), mas o meu laudo de neuropsicólogo tem mais de 12 meses e não é aceito para tais fins; além disso, eu não quero admitir que ainda não superei completamente minhas dificuldades, ou minhas características neurobiológicas, ainda não consegui ensinar ao meu cérebro e a todo o sistema o que as pessoas esperam, como eu devo falar, o que falar, quando e sobre as etiquetas, tudo o que eu consigo identificar no momento da análise de outros discursos, que não os meus. 

Talvez, o meu projeto seja realmente horrível, não apresente uma questão e seja sem base teórica, talvez o meu currículo Lattes seja uma porcaria por ter nascido como nasci (pobre, autista), talvez esteja na área errada. Talvez, a desclassificação tenha outros motivos, mas essa não foi a primeira entrevista da qual saí parecendo um jegue anencefálico. Talvez eu apenas esteja frustrada.

Pode ser que eu precise dizer para mim e para o mundo quem eu sou, buscar um laudo válido e utilizá-lo quando tiver o direito, o direito de ter minhas peculiaridades avaliadas de forma justa, ou seja, vistas como elas são e não sendo estraçalhadas por subjetividades e julgamentos de mérito com padrões estabelecidos para apenas uma classe de seres humanos. 

Infelizmente, no sistema em que vivemos, as diferenças estão se tornando cada vez mais gritantes e excludentes, nascer fora de círculos nos deixa eternamente fora deles. Talvez eu devesse nomear claramente algumas coisas, sem medo! Pois aí vai, sou AUTISTA e estamos no CAPITALISMO, existem modelos, círculos, relações que deixam tudo sempre como é, essa é a realidade. Sendo inescapável essa verdade, a solução, por agora, é tentar tirar proveito dos poucos direitos que temos, vou brigar por eles, enquanto os tivermos, com a esperança de que tudo mude logo e de que todos, que desejem tanto estudar como eu, tenham o direito de também estarem dentro de uma universidade.



Comentários

  1. Nossa bastante profundo....
    Eu entendo perfeitamente mesmo tendo outro tipo de diagnóstico e ter passado por essas bancas composta de pessoas competentes mas que não tem o mínimo de noção do quanto é difícil para quem tenha diagnóstico...
    Quando eu receber o meu diagnóstico descobriu os meus direitos na mesma proporção que eu descobri da quantidade de pessoas que não tem noção do quanto pode nos ajudar, e ali eu me prometi lutar por mim e por todos que teriam o mesmo diagnóstico que eu brigando pelo meu direito estou abrindo portas para que outras façam os mesmos...
    Nunca desista luta porque capacidade você sempre teve independente do diagnóstico

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Se quiser, deixe seu e-mail.