Confissões de uma mulher do seu tempo

Imagem gerada por IA.

Ontem eu havia completado 30 anos e me lamentava aqui neste blog (quando essa plataforma ainda tinha vida e leitores), hoje, lamento-me por tantas coisas, mais ainda por ver que minhas oportunidades estão se acabando e agora me encaixo em "sénior". Que maluquice é essa, eu ainda não realizei meus sonhos, antes de ontem eu tinha 18 aninhos e nem sabia como comprar pão na padaria, hoje, me colocam na categoria sénior? Alguma coisa está errada com esse tempo, ou com essas classificações, ou com o meu corpo que não responde à minha mente.

Todos os dias eu me levanto, o mais tarde possível e o mais cedo necessário, e realizo uma grande gama de atividades que são invisíveis para os que me rodeiam e mais ainda aos que não sabem de mim. Limpo toda a sujeira espalhada, cozinho, cuido das plantas, falo com a caramelo enquanto ouço textos que não tenho tempo de ler; dependendo do momento de minha vida, vou para a aula, ou para o estágio,  depois vou trabalhar. Separo milhares de roupas e as coloco nas repartições de cada um, varro, tiro a infestação de traças e de teias, às vezes, quando dá, lavo o banheiro. E, quando as palavras derramam e tenho paz, escrevo. 

Sou uma mulher do meu tempo, de 1976, e como tal, sou também o meu tempo e o que consegui não ser dele. Eu fui a primeira da minha família inteira a entrar em uma universidade, mas, felizmente, não fui a única. A minha mãe ia todos os dias ao Pico do Itacolomi para buscar lenha quando criança (e ainda dizem que o não podemos entrar no Pico e que os "nativos" depredam o lugar). A família do meu pai vivia na roça. Somos de origem pobre e por este motivo, quando me encontram com meu marido e me perguntam de que família eu sou, não tenho resposta, não sou de família "tradicional".

Olho para trás e penso sobre como me tornei o que sou e sobre o que sou, só sei que sou inacabada. Todos os dias, o meu coração se dilacera um um pouco quando percebo o que nossa espécie é capaz de fazer, de como ela é capaz de odiar, e ainda me chamaram de insensível. Compreendo os motivos que levam uma pessoa a desistir da vida, mas tento valorizar os motivos para permanecer nela e uma das maneiras de apreciar a vida é aceitando que somos parte de tudo, de todo o milagre que acontece a cada instante, aceitando o nosso lugar no planeta em relação a todo o resto e que não estamos acima de nada que nele há.

Na adolescência, sofri pela miséria, sonhava com uma casa e uma simples calça jeans. Apesar de toda a dificuldade de comunicação, havia aqueles que gostavam de mim e me respeitavam, porque sempre tentei respeitar a todos. Fui rejeitada por ser esquisita, mas aprendi a ler as linguagens.

Na vida adulta, caí como uma abóbora no chão e fiquei toda espatifada; tive filhos e dei tudo o que fui capaz, e sei que talvez não tenha sido o suficiente. Tentei me melhorar e não desistir de aprender e de ter condições melhores. Só que, apesar de muito doloroso, lá, era muito, aqui é pouco o tempo.

Hoje, tenho alguém que me dá a mão e caminha comigo, mas sinto que o tempo nunca será o bastante. Sou uma mulher que descobre, a cada dia, mais do que pensava saber e isso me mostra que o ser humano e toda a sociedade são feitos de coisas e de ideias que são formatadas através de afetos, amor, ódio, medo e desejos. Precisamos aprender a formatar. Sou uma mulher que pode ser chamada de "sénior" e não pode mais ter outras bolsas nas universidades. Já posso ser avó. Não fico bem fazendo dancinha. E, para piorar, o mundo está se tornando uma versão criada por uma Inteligência Artificial que não sabe como o corpo humano é na realidade.

Eu gostaria de terminar este texto com esperanças, mas, como ter esperança quando já se viveu a metade da vida e assistimos a pessoas com tanto ódio que defendem o extermínio de crianças, de pobres, de famintos, ou de outras pessoas por estarem vestidas de determinada forma, torcerem para um determinado time, professarem uma determinada religião,terem determinada origem, cor ou sexualidade? Como ter esperanças se todos os dias vemos noticias de pais que abusam de suas filhas, ou de líderes religiosos que abusam de seus fieis de todas as formas imagináveis recebendo palmas e risos por isso? Está difícil ser uma mulher do meu tempo.



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