A Mãe Meme

      


    O adolescente desatento do mundo real entrou pela porta da sala sem olhar para os lados, jogou sua mochila em cima do sofá e nele também se atirou, retirando com os próprios pés os tênis que empestearam todo o ambiente com o odor ardido da idade no verão. Os pés odorosos foram colocados em cima do sofá e o remexer do indivíduo enquanto olhava para o telefone impregnou o móvel com aquele cheiro. Quando cansou-se, levantou-se e foi para a cozinha, abrindo as panelas enquanto a mãe ainda terminava de cozinhar. Nas panelas, havia legumes, primorosamente preparados, arroz, feijão e linguiça. O jovem bufou, não gostava da comida, saiu beijando santo, pegou pão, partiu-o em cima da mesa que ficou inundada de farelos, pegou presunto, queijo, leite e fez uma mistura de sabor morango que tomava desde a infância. Comeu, repetiu, saiu e deixou a mesa como se ela fosse um cenário de guerra, cheia de restos que não foi capaz de colocar no lugar. Michele observava tudo aquilo pela milionésima vez em sua vida, já não suportava mais ter que "ensinar" as mesmas lições para quem não tinha ouvidos e já conhecia tudo de cor. Aguentou o quanto pôde, não queria ser chata, esse era o adjetivo favorito que todos a deram. Havia outros, como ranzinza, cricri, grossa, estressada, mau-humorada e por aí vai, ninguém quer ser isso; por esse motivo, estava tentando se segurar naqueles dias.

    O homem da casa chegou, foi andando até ela, sem ao menos dar um sorriso, disse:

    _ A comida tá pronta?

    _ Quase.

    O homem foi até a geladeira, pegou uma garrafa d'agua e tomou no gargalo, esvaziou-a e a colocou sobre a mesa. Estava com fome, pegou alguns biscoitos e deixou uns pedaços cairem enquanto caminhava, chutou os maiores para o canto; foi para o quarto, tirou a roupa suada e jogou sobre a cama, colocou os shorts até dar a hora de voltar para o trabalho. Deitou na cama no meio das roupas suadas e ficou entretido em suas redes sociais, dando gargalhadas de vez em quando, concentrando-se profundamente em alguma coisa. A mulher picava couve, lavava as vasilhas utilizadas, varria o chão que até há pouco estava limpo, agora estava impregnado de cascas de pão, biscoito, gotas de leite e água. Refogou a couve enquanto ouvia as gargalhadas irritantes do marido no quarto. Precisava correr, era professora dos primeiros anos do Ensino Fundamental, a escola era perto, mas já estava atrasada. Trocou de roupa, limpou suas partes mais comprometidas pelo trabalho, não deu tempo de tomar banho; pegou sua sacola cheia de trabalhos que ficou fazendo até meia noite do dia anterior, disse tchau e ninguém respondeu.

    Chegou na escola e encontrou os mesmos rostos desestimulantes, cumprimentou os colegas de trabalho, foi para o pátio rezar com todos da escola, embora dissessem que escola é laica. Os meninos não se aquietavam, o sol escaldava sua peles, mas não podiam sair antes da reza. Depois da bênção solar, os meninos foram para as suas salas com suas professoras. A aula foi boa naquele dia, os meninos estavam animados e participativos e gostaram do texto e das atividades ilustradas que Michele havia preparado. Na hora do intervalo, o povo começou a fofocar sobre um professor do outro turno que teve suas fotos vazadas nas redes sociais, dos alunos e dos pais deles, que eram pervertidos, loucos, irresponsáveis, do último crime ou suicídio, como de costume. Michele apenas comia o "biscoito pedagógico", que era como chamavam aquela especiaria sem sabor definido doada pela secretaria da educação. Enquanto fofocavam para se esquecerem de suas vidas mesquinhas, uma criança veio correndo porque um menino havia caído e quebrado um dente, era aluno da Michele, que saiu correndo para acudir o coitado que gritava com a boca ensanguentada. Enquanto tentava acalmar o menino e esperava a ambulância, o seu telefone tocava insistentemente, era sua filha. Com o menino chorando no colo, tentou ver as mensagens:

    _ Mãe, o meu tênis furou e tô precisando de caderno, posso comprar na internet? 

    Ódio, foi o que sentiu. Não respondeu. Cuidou do menino até que a mãe e a ambulância chegaram. A mãe chegou como uma leoa que queria matar o agressor de sua cria, xingou a escola, xingou a professora, xingou os alunos e disse que ia processar todo o mundo. Michele saiu tarde e foi caminhando devagar para a casa. Chegou em casa já eram quase 19:00 h. O marido estava com cara emburrada, a comida ia demorar para sair. Michele entrou dentro de casa e no sofá estavam duas mochilas, restos de pipoca, que também se espalhavam pelo chão. O cheiro encardido continuava a empestear o ambiente. A cozinha estava pior do que o cenário de guerra anterior, os filhos fizeram brigadeiro e tudo estava insalubre, havia gotas de doce até no teto, dezenas de copos na pia, pratos, panelas, o chão estava grudento. A garrafa vazia continuava no mesmo lugar. 

    Foi para o quarto em busca de alguns minutos de conforto e paz, mas não havia lugar para se esparramar pela cama, estava cheia de roupas sujas, ferramentas e coisas indefinidas. O marido estava estressado porque tentava consertar um móvel que estava bambo. A menina veio:

    _ Mãe, posso pedir?

    _ Pede pra lá, menina! 

    O adolescente não estava em casa. A menina estava com fome. As roupas precisavam ser catadas pela casa e colocadas para lavar, além dos destroços que precisavam ser restaurados na cozinha. Ela ainda tinha que planejar as atividades para o dia seguinte e corrigir as do dia. Ficou imóvel por um instante para decidir no que ia trabalhar primeiro; queria muito fazer aquela especialização, mas, como? Era só uma mulher.

    Decidiu que tinha que limpar a cozinha antes de tudo. Ela já tinha falado milhões de vezes para aquele povo que morava com ela ajudar nas tarefas, mas as crises só assustavam e davam algum resultado no dia. Hoje, ela não seria chata.

    Pegou o telefone celular e ficou vendo vídeos em que aparecem cenas engraçadas entre mães e filhos: a mãe tendo crises, gritando com os filhos, ameaçando ir embora, falando da bagunça; os comentários confirmam a regularidade do "comportamento materno", muitos riem porque se identificam na cena. "Ninguém pensa sobre os motivos que levam uma mãe a se comportar como louca". Pensou. Enquanto pensava, o adolescente chegou e fez seu ritual de sempre, sem a mochila. Depois, foi até a cozinha, abriu armários, panelas e disse:

    _ Não tem nada nessa bosta dessa casa!

    Michele não queria ser chata, mas teve que voltar a ser a "mãe meme". Gritou, esbravejou, xingou, estava cansada, muito cansada. Ninguém viu ou se importou que ela havia se levantado cedo, tirado todos os sacos de lixo, colocado novos, varrido o chão, passado pano, limpado a pia do banheiro, o vaso, trocado a toalha que estava imunda, limpado todos os móveis da cozinha que sempre ficavam respingados de algo, jogado água nas plantas, colhido couve, telefonado para o mercado, preparado os alimentos, lavado dezenas de vasilhas, tentado tirar o chulé do sofá para que a casa ficasse agradável. Ninguém havia notado que ela tinha dormido poucas horas para preparar tudo para os outros, ninguém sabia disso. Ninguém também sabia do que ela fazia no trabalho, do que era obrigada a engolir diariamente, é como se ela não existisse. Todos só sabiam que quando ela exigia um pouco de respeito a tudo o que ela fazia e a quem era, ela era a chata.


    

Comentários

  1. Triste... Muito triste Essa realidade..
    Trocaria o nome de "mãe meme".por; "mulher invisível", ela deveria realmente ser um meme em um dia repetindo todas as atitudes dos integrantes da casa, fazendo invisível todas as atitudes sendo visível apenas para ela mesmo
    Não suportaria uma vida dessa...

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  2. tudo isso para ser largada num asilo na velhice...

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