Reflexões de fim de mundo

 
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O dia estava esquisito, como todos os dias do último mês do ano.  Fim de ano carrega sentimentos que invadem as pessoas, modificam seu modo de pensar e pesam a atmosfera; são tantas as obrigações sociais, festividades forçadas, tantos sorrisos desarmoniosos que os músculos faciais terminam o dia exaustos. Há também toda a preparação para o encontro familiar anual, aquele encontro em que as tentativas de amor são combatidas pelas hipocrisias cotidianas. Além de tudo isso, a obrigação de comprar bugigangas com o décimo terceiro, que deveria sobrar para pagar os impostos do começo do próximo ano e o material escolar dos filhos, torna ainda mais torturante a obstinação de ser e parecer feliz. Para terminar o desenho da ambientação, é preciso dizer que ainda é época de desastres no mundo, chuvas intensas e casas desabando.

Dito isso, neste clima tão agradável apresentado, fui pegar o ônibus para fazer a progressiva que odeio, mas que facilita a minha vida e me faz parecer, aos olhos da sociedade, mais "apresentável", quando um senhorzinho e uma senhorinha muito bem humorados e ativos começaram a conversar. Os dois disseram ter a mesma idade, 82 anos, e quanta vida havia neles! A senhora tem vitiligo, as manchinhas mudam conforme o dia e a deixam fofa de qualquer jeito. Os dois riam, falavam de esperança, faziam piada. Eu e outras pessoas, como supostamente seriam as pessoas de mais de 80 anos, olhavamos vergonhosamente para a tela.

No ônibus, uma senhora preta puxa papo. Estava com o pé estrupiado, o tinha torcido e estava indo trabalhar. Eu, com a minha lógica disse que ela deveria pegar um atestado, mas ela disse que não tinha ninguém para trabalhar no seu lugar e os pobres turistas iriam ficar abandonados. O dono da pousada, suponho, teria mais de 90 anos. Segundo a dona, ela trabalhava lá há mais de 30 anos e sabia como era, que realmente não tinha ninguém para ficar em seu lugar. Mostrou-me com um certo orgulho a cicatriz na mão criada quando foi limpar o terreno da pousada e um bambu perfurou tudo; segundo ela, colocou luvas e voltou para o trabalho. Via-se muita satisfação ao falar de seus feitos, como o de ter começado a trabalhar aos 9 anos de idade, "hoje não vê mais ninguém trabalhando nessa idade", dizia, como se a geração atual fosse "fraca". Com a minha lógica, perguntei: você acha certo criança trabalhar? Besteira a minha, ela não tinha resposta porque não conhecia outra verdade. Por um momento, comparou o desastre de Brumadinho com o seu acidente em que perfurou a mão, como se o que valesse fosse a vontade de Deus e não a nossa. Mais uma vez, argumentei sobre a responsabilidade dos seres humanos envolvidos, mas sabia ser em vão. Despedi-me e fui pegar outro ônibus.

Pessoas... Do que precisamos para viver bem, de conforto, paz, direitos, respeito, ou de acreditar que estamos cumprindo bem o nosso papel nesse mundo caótico?

Reflexões de fim de mundo.

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