A mulher amorfa



Lembra daquela senhora amorfa, meio redonda, meio baixa, de andar ligeiro e invisível que servia as pessoas, especialmente nas novelas da TV? Muitas vezes, ela era preta, confundida com um móvel que não ouve nada e apenas serve para trazer conforto à vida de alguns; aquela mulher tinha fome, mas, embora fizesse cardápios magníficos e caros, não podia comer do que sua mão preparava. Essa senhora era acostumada a comer depressa, às vezes em pé, escondida atrás de uma geladeira ou de outra coisa como ela. Em algumas casas, tinha talheres e copos  separados, cada ser precisava utilizar o que lhe cabia, contaminação não é brincadeira! Em outras casas, tinha que levar sua marmita com ovo, porque já recebia salário, não podia gerar gastos.

Muitas dessas senhoras eram raptadas cedo, lá pelos sete anos, pois geralmente faziam parte de família miserável e numerosa que se sentia confortada e esperançosa porque uma outra família rica iria cuidar da filha. Dizia, a família rica, que a menina também era de casa, mas ela não ia para a escola, não aprendia nada a não ser servir os outros seres humanos e ter gratidão por receber teto e comida, porque uma miserável, que morreria a míngua, não se atreveria a reclamar de almas cristãs tão caridosas! Essas escravinhas modernas viviam ali, sem se casarem, sem terem filhos, eternamente gratas por poderem servir a almas abençoadas que jogavam suas cuecas e calcinhas infestadas para que elas as lavassem .

Algumas dessas empregadas tinham familiares, de vez em quando, num sábado ou domingo, quando recebiam liberdade provisória. Elas cuidavam de filhos mimados de dondocas enquanto seus filhos se criavam pelas ruas com as migalhas que a mãe trazia dos restos dos senhores; uma ou outra tinha a sorte de ser empregada de senhores mais caridosos, que as ajudavam com alguma laje, cesta básica, roupas usadas, é o que um cristão deve fazer. Quem mais poderia lavar suas privadas tão bem, enfiar a mão nos dejetos humanos? Ninguém da família dos ricos ou grupo de amigos, certamente.

Lembra - se dessa mulher amorfa? Muitos se lembrarão muito bem, pois ela era avó, mãe, filha, irmã da maioria dos brasileiros; outros se lembrarão de que alguém assim esteve em suas casas por algum tempo e muitos gostariam de ter um bem como esse das novelas, ascendendo na vida, porque isso significa ser bem sucedido. Pois bem, essa pessoa amorfa era minha mãe. Descobri recentemente que ela escreve com uma clareza e perspicácia que eu não conhecia, porque talvez ela seja como eu, se aquieta em seu canto para não chamar atenção. Descobri também sua voz afinada cantando, depois de seus 60 anos, nunca a tinha ouvido cantar! De sua alma fina e sensível, já conhecia fragmentos, mas o ser filha não me deixava a enxergar como realmente era, e hoje vejo que tenho mais dela que do meu pai. Essa mulher maravilhosa poderia ter sido uma grande artista e articuladora se tivesse tido a chance, se não vivêssemos em um sistema que inventa descaradamente uma meritocracia impossível e intragavelmente alienadora. Essa mulher não é amorfa, ela é uma mulher extraordinária e teria sido ainda mais se vivêssemos em um mundo com valores diferentes dos que temos no capitalismo. Revolucionemos!

Comentários

  1. Que incrível colocação e junção de palavras vindas do coração, essa mulher tbm é minha mãe, minha tia, minha prima ❤️

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