O delegado da festa junina


Eu tenho um certo trauma de escola, porque nunca fui bem-vinda, aceita, poucas vezes me senti fazendo parte de algo. Comecei a frequentar aulas já com sete anos de idade, em uma pequena escola particular em Ipatinga, cidade nova, não havia ainda escola pública no bairro Ideal. Lembro-me de que nesta escola "Pinguinho de Gente" eu tive meu primeiro contato com a perversidade incrivelmente presente nas relações infantis. Eu era uma solitária, não sabia como me comunicar com as outras crianças, muito menos com os professores, tinha pavor de abrir a boca.

Uma vez, ouvi uma menina dizendo que, quando crescesse, se casaria com um homem bem velho e bem rico para ficar com o dinheiro dele... Naquela idade, eu já pude me indignar e imaginar de onde vinham aquelas palavras, não eram dela, mas já estavam nela. Outra vez, cheguei cedo e sentei-me na carteira da frente, mas um menino veio, todo agressivo, e me ordenou a sair do lugar que julgava ser dele. No recreio, sentava-me sozinha com o meu café com leite e o meu pão com manteiga, enquanto os meninos comiam seus biscoitos recheados com "Toddy". Foi nesta escola que também pude perceber como os adultos mentem para manipular os outros, pois estudei nos dois turnos e, em ambos, as professoras diziam que os alunos do outro turno eram bem melhores.

As reuniões de pais eram terríveis, as professoras falavam mal de cada aluno na frente de todos. A festinha do dia das mães, o que reprovo, aconteciam em cada sala, como a minha mãe não poderia comparecer em dois lugares ao mesmo tempo, perdeu o momento da minha apresentação por estar na sala do meu irmão naquele momento.

A lembrança que mais tenho é da festa junina; as professoras perguntavam para cada menina se ela queria dançar com esse ou aquele menino. Havia um menino que tinha uma deficiência física, seus braços eram curtos e ele só tinha três dedos em uma mão e dois em outra. A professora perguntou a quase todas as meninas se elas gostariam de dançar com ele, e todas disseram não. O menino era encapetado e sua condição não afetava a sua vitalidade e o seu endemoniamento. Quando chegou a vez de me perguntar se eu queria dançar com o rapazinho, eu me senti muito sem graça e disse sim. O resultado foi que, na hora da quadrilha, o menino saiu correndo, fazendo suas diabruras, e eu nem sei se dancei ou não.

O meu marido era gordo nessa época, morava em outra cidade. Ele me disse que acontecia a mesma coisa na escola dele, e que ninguém quis dançar com ele, ele foi obrigado a ser o delegado, ou padre, não me recordo bem. Talvez, se morássemos na mesma cidade, na época, e estudássemos na mesma escola, provavelmente nós dançaríamos aquela quadrilha juntos, e, talvez, eu poderia ter vivido muito mais tempo ao lado dessa pessoa especial. 

Todas essas e outras experiências que vivemos, nos tornaram o que somos e servem de base para inúmeras discussões que travamos todos os dias; todos os dias, discordamos, concordamos e crescemos um pouquinho, aprendendo a conhecer e a reconhecer o outro, dentro de cada condição vivida. 

Dentro deste mundo, muitas vezes, perverso desde a infância, ainda podemos encontrar ilhas de conforto e somos capazes de pensar sobre os valores que constroem (ou destroem) nossa sociedade, valores que são atribuídos a formas, coisas, pessoas, ações e sentimentos, e que são transmitidos pelas gerações passadas através de seus discursos e de suas práticas que, felizmente, não são imutáveis.

Analisando acontecimentos traumáticos, só sinto por não ter conhecido aquele padreco, ou delegadozinho de festa junina (de vermelho) naquela época, para que tivéssemos tido a oportunidade de vivermos mais tempo de nossas vidas aprendendo e aproveitando um com o outro.



Comentários

  1. Também já passei muito por essas coisas nas escolas imagina uma deficiência tímida cadeirante que na época não aceitava a cadeira não fazia parte dos grupos de trabalho.... Costumo dizer que na nossa época os bullyings era muito mais cruel e sobrevivemos a eles com as nossas cicatrizes mas muito mais fortes e resistentes...
    Mas achei lindo o toque de romance no ar

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    1. Todos eram muito cruéis, desde os alunos, até os professores, que não tinham sensibilidade, ou, boa formação.

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