Hoje eu sou capaz de compreender o motivo pelo qual muitos seres humanos
abandonaram tudo e foram fazer miçangas, viraram andarilhos, mendigos, monges
budistas, tentaram se libertar das amarras que nos prendem a uma existência
miserável. A miséria está encrustrada nos poros do papel no qual escrevemos
nossas histórias, de lá não sai, mancha tudo como o pó do grafite quando se
derrama do apontador sobre a lauda. A miséria é que nos obriga a buscar incessantemente por
aprovação, por amor, por sorrisos, por um lugar mais elevado; é a miséria que
nos torna tão ridículos e cruéis quanto a todos os que nos machucaram, nos
humilharam, nos cuspiram no rosto.
É através da miséria que vestimos máscaras
todos os dias, máscaras de hippies apaixonados, militantes desesperados,
entidades bondosas, capatazes bem sucedidos, pais exemplares, empreendedores
fervorosos, estudantes nota 10, marginais temíveis, bem feitores, e de tantas
outras personas vazias que caminham pelas cordas bambas do planeta.
A miséria
nos obriga a fingir que não temos sono, que não temos fome, que não desejamos ou
odiamos, mas, às vezes, também nos obriga a odiar demais, a amar demais, e a ser fã
demais, porque a miséria é uma prisão feita de prescrições temporais e ilógicas;
a miséria nos coloca no lugar de marionetes clicáveis.
Somos miseráveis quando
nos movemos inconscientemente em busca de reconhecimento daqueles que não fazem
parte de nossa vivência ou nos ignoram, somos miseráveis porque queremos o amor
de desconhecidos, desejamos os prêmios que eles criam, seus olhares invejosos e
admirados, seus desejos escusos lançados a nós. A miséria alimenta nossa ânsia vaidosa por reconhecimento.
Nós, seres humanos, não passamos de um amontoado de
hormônios e de valores. Valores miseráveis criados por humanos miseráveis. Nossos valores nos dizem sobre o que é certo ou errado, sobre o que é bom ou ruim, sobre o que devemos ou não devemos ser, desejar ou suportar. Nossos valores nos colocam em um lugar e nos dizem sobre a qual lugar devemos nos dirigir. Nossos valores nos tornam miseráveis.
Somos miseráveis quando precisamos sorrir para quem odiamos, dizer sim quando deveríamos dizer não, agir de determinado modo mesmo que seja doloroso, aceitar a intervenção desrespeitosa de outro, negar nossas necessidades, ou tudo o que nos cause desconforto para obter ganhos cujos valores se sustentam nos discursos sobre escalada social, ou naqueles sobre a aceitação de grupos, sejam lá quais forem. A miséria nos torna "pangarés" da sobrevivência trouxa.
É fácil cansar-se de ser miserável, mas não é fácil deixar de ser miserável na existência sem ser miserável na vida. Como livrar-se das necessidades criadas pelos valores sociais sem livrar-se das necessidades básicas de sobrevivência, como a de se alimentar? Como deixar de ser pangaré na vida e continuar existindo?
Só quando essa sociedade miserável for capaz de reconstruir todos os seus valores.
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