Poderia o menino Jesus ser preto? Seria Jesus amado, idolatrado, reverenciado se sua pele fosse escura e seus cabelos fossem crespos?
Alguns dirão que sim, e darão o exemplo de Nossa Senhora Aparecida, que seria preta, mas as pessoas sabem que Nossa Senhora Aparecida, que é uma representação de Maria, é uma entidade negra? E o Pelé? Outros dirão, mas será que ele mesmo sabe que é preto?
Aconteceu no Brasil, de acordo com Kabengele Munanga, um processo de mestiçagem que influenciou na maneira como o racismo se desenvolveu; segundo ele, os filhos dos senhores de escravizados com mulheres escravizadas ou libertas teriam maior aceitação social, através dos benefícios financeiros que pudessem receber quando esses pais os reconheciam como filhos. Essa vantagem herdada pela filiação e pelo nível de riqueza foi estendida aos descendentes brasileiros relacionando a condição de descendência bem sucedida ao nível de branqueamento do indivíduo, ou seja, quanto mais clara é a pessoa, menos preconceito ela sofreria dentro da sociedade. Outra questão levantada pelo autor é que a percepção de negritude também depende do nível que o indivíduo ocupa dentro da hierarquia econômico social, isso significa que, quanto mais rico e importante for o indivíduo em sua sociedade, menos as questões de cor possuem relevância. Parece ambíguo, mas não é, pois quanto mais escuro, mais discriminado, porém, se o indivíduo for "pica das galáxias", ninguém vê que ele é preto.
Para compreendermos melhor a questão da cor, devemos entender que o racismo não se construiu da mesma forma em todos os locais onde ele existe; nos Estados Unidos, por exemplo, o preconceito vai além da aparência física da pessoa, o ódio e a intolerância atingem a todos os descendentes de pessoas de origem negra, mesmo que estes possuam cor de pele, cabelo e olhos claros, ou seja, o preconceito é contra a origem do indivíduo, não apenas contra a cor. Aqui no Brasil, a exclusão e o preconceito levam em conta o nível de pretitude e o nível de poder econômico e de influência que o indivíduo possua. Essa questão é complexa e gera dissensos sobre programas de inclusão, de cotas, porque não há um parâmetro adequado para diferenciar uma pessoa preta de uma branca, nem tampouco fica claro se a cota existe para uma reparação histórica que, se fosse o caso, deveria englobar a maioria da sociedade pobre e misturada que é descendente dessas pessoas que foram escravizadas, transformando, assim, todos os programas em um que leve em consideração a renda.
Porém, ser preto implica em ocupar um lugar na história e na sociedade, e isso sim é intensificado de acordo com a pretitude. Com as lutas e reinvindicações, a maneira como a questão do racismo é encarada na nossa sociedade está mudando. Na minha infância, porém, as únicas fotos de pessoas pretas que existiam nos livros eram as dos escravizados, então, era assim que a identidade do negro era construída e consolidada em nossa sociedade, a de um escravo, subalterno, ignorante. Quem seria o louco a querer ter a ver com tal identidade? Eu cansei de ver pessoas pretas, até mesmo da minha família, negarem a sua origem e falarem mal dos "pretos". Ser preto era algo ruim, ninguém deseja fazer parte de algo negativo.
Eu já falei sobre essa questão outras vezes aqui e me sinto no direito de falar, embora talvez possa não ser considerada preta, porque essa linha de divisão da cor não está posta. Na minha certidão de nascimento está escrito "parda", mas não teria coragem de me candidatar a uma vaga nesta cota por medo de não me identificarem como eu me identifico. Não sei de onde vieram meus antepassados, dizem que minha bisavó por parte de mãe tinha olhos azuis, a minha vó era branca e tinha olhos cinzentos, o meu avô, não conheci. A minha avó por parte de pai tinha expressões indígenas e olhos castanhos claros, o meu pai é preto e tem cabelos crespos, o meu avô, também não conheci, pois, assim como o outro, suicidou-se no mar de machismo e ignorância doente que cobria o mundo. Então, eu sou assim, cor de burro fugido, como diziam os antigos. Como eu sei o que é ser preto? Tenho filhos que são considerados pretos, e dói.
Doía quando os meus filhos eram crianças e não podiam andar de chinelos, ou quando entravam nos lugares e as pessoas os ficavam vigiando; doeu quando eu entrei com meu marido em um evento em que as pessoas eram revistadas e os revistadores não nos revistaram, ficaram rindo para nós desajeitados, e, em seguida, revistaram meu filho e a namorada dele. O meu marido é branco e de olhos verdes. Doeu quando fui ao supermercado e, no caixa, percebi que a moça tinha mandado o segurança verificar alguém suspeito, mas, percebendo que o suspeito estava conosco, despistou e disse que era engano. Ele só estava comprando chocolates. Todos os funcionários eram pretos.
Os meus filhos são pessoas excelentes, inteligentíssimos. Um é um gênio para o audiovisual, o outro estuda o dia todo para ser médico, porque gosta. Nunca desrespeitariam uma mulher. Queriam mudar o mundo. Não podem entrar em um supermercado sem parecerem marginais. Eles são lindos.
Tudo isso dói incomensuravelmente porque não posso, ainda, mudar nada. Não posso mudar a maneira como as pessoas os veem, nem o lugar que eles são colocados por causa da sua linda cor e do seu cabelo. Nesses momentos eu sinto ódio, e de tanto ódio, quase que me desanimo dessa sociedade doente. Mas, então, vejo como eles são pessoas maravilhosas e tenho esperança, e para dizer algo, faço um menino Jesus preto mesmo porque eu quero e porque é lindo.
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