Meio século de Alienigenisse


Há 49 anos nasci alienígena. Quase meio século de dores e incompreensões fazem parte da minha história. Eu não estou me colocando como vítima, aprendi muita coisa com essas dores e incompreensões, e a mais importante delas é saber dos meus limites e dos meus valores. 

Ser uma neurodiversa é receber o mundo de forma diverente dos demais, e nisso, eu não tenho nenhuma espécie de controle, é uma condição inata. Eu não controlo o quanto o som de uma moto vai doer na minha cabeça e o quanto várias pessoas falando ao mesmo tempo vai me confundir e me transtornar. Eu não controlo não conseguir abrir os olhos direito quando a luz solar estiver muito intensa, principalmente depois de dias estressantes. Nenhuma plasticidade cerebral, ainda, será capaz de mudar isso, não é pirraça e nem gênio.

Eu também não sou boa em comunicação. Antes de saber de que planeta eu vinha, eu já sabia que eu ficava exausta depois de ter que conversar e interagir com outras pessoas, especialmente desconhecidos. Eu tive que aprender que as pessoas esperam que eu me interesse por seus assuntos e que pergunte mais sobre o que elas disseram, mesmo que eu não queira saber; tive que aprender conversas de ponto de ônibus, de festas e fofocas. Tudo isso é como um quebra-cabeças para mim, que eu sei montar, mas me cansa e me estressa.

Eu não acho graça no que as pessoas acham. As tais fofocas (só se forem específicas eu me interesso), sempre me esqueço delas e dos detalhes. Eu não acho graça em piadas de sexo, aliás, nem criança deveria achar graça quando alguém faz comparações esdrúxulas de comidas, objetos e drinks com órgãos sexuais e seus fluídos. Não é questão de não entender a piada, mas de não ver o sentido do humor.

Odeio surpresas. Situações novas exigem novos planejamentos imediatos e frustram planos e expectativas pré-estabelecidas. Eu não vejo sentido em ficar horas com as mesmas pessoas depois que já falei tudo o que deveria e ouvi delas. Eu não vejo sentido em fazer drama porque a pessoa está longe, se ela está bem.

Eu tenho problema com espaços. Eu não me lembro deles e me perco. 

Eu falo palavras inapropriadas às vezes, isso me custou várias coisas, dentre elas, o doutorado. O problema é que não sei fazer os teatrinhos de bajulação que esperam no mundo rançoso da academia, deve ser por isso que, apesar de amar demais o conhecimento, eu tenho nojo da vaidade acadêmica.

Eu custo a despertar. Os meus olhos abrem, mas o meu corpo fica dormindo ainda. Não tenho ânimo de manhã. 

Eu não gosto de palavras vazias. Eu só falo exatamente o que penso e sinto. Eu nunca digo que alguma coisa é linda se eu não acho isso. 

A minha casa é sagrada para mim. É meu refúgio, onde guardo a minha intimidade, minhas coisas preciosas. É onde passo o tempo que me pertence, minhas boas experiências e onde entram as pessoas que eu amo. 

Eu sou autista, e isso é uma condição neurológica, não é uma doença e não tem cura. Eu não sou fresca, ou qualquer outro dos xingamentos que colecionei durante a vida, mas essa sou eu.  Aceitar essa condição significa compreender que ela faz parte de mim e que ela me faz diferente de muitos, mas parecido com outros. Aceitar isso é respeitar meus limites, e, apesar de um dos símbolos do autismo ser um quebra-cabeças, eu não sou uma peça que tem que se encaixar nesse mundo. Eu sou inteira do jeito que sou.



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