Eu não sei sentir saudades

 


No Brasil, assim como em outras partes do mundo, há o culto às demonstrações intensas de emoção, o que podemos ver em relação ao futebol, por exemplo. Cultuamos as demonstrações apaixonadas de amor, dor, fé, ódio e até mesmo de servidão, e essa maneira de demonstrar sentimentos é considerada ideal e correta, o que foi percebido recentemente em uma reportagem da Globo sobre o nadador que quebrou um recorde e não demonstrou reação emotiva de acordo com o que se "é esperado" nos esportes, especialmente; o tom da reportagem nos dava a entender que alguns esportistas, e algumas nações, são "frios" e não valorizam e celebram as conquistas como os brasileiros, que, de acordo com os argumentos apresentados, são os exemplos de manifestação. Nessa lógica, pais torcedores incentivam os filhos a sofrerem desmesuradamente nos campos como sinal de devoção exemplar ao seu time, e se flagrado por alguma câmera em prantos escandalosos, o orgulho será eternizado e relembrado para sempre, "espalhafatosamente".

Nossa sociedade espera que sejamos "calorosos", como os estereótipos nos descreveram por décadas aos quatro cantos do mundo. Devemos ser alegres, amorosos, carinhosos e estar o tempo todo ocupados com aqueles que amamos, especialmente os familiares. O ideal é abrir mão de nossos desejos, nossas individualidades em favor dos membros de nossa família, e o exagero aplicado nesses casos tem gerado muita gente folgada, mas isso é outro assunto. Podemos dizer que quem não se encaixa nesses padrões é visto de maneira negativa, embora vivamos em um tempo louco de grande abertura e possibilidade de escuta das minorias, mas, também, um tempo de avanço (ou retrocesso) do conservadorismo. 

Dizer que se sente saudade (sentindo ou não), tornou-se uma obrigação, pois é de bom tom "sentir saudade", morrer de saudades, então, é a expressão máxima do amor. Sobre a palavra e o sentimento de saudade, novamente recaem os estereótipos que dizem que só a língua portuguesa possui essa palavra e, consequentemente, conferiria ao seu povo falante a especificidade de possuir esse sentimento, o que popularmente nos conferiria um status maior na evolução da humanidade sensível.

De acordo com matéria na revista National Geographic:

"“Saudade” representa um conjunto de sentimentos, normalmente causados pela distância ou ausência de algo ou alguém. Esta ausência pode ser física ou não, isto é, pode sentir-se saudade quando alguma relação de amizade, por exemplo, termina. Esta palavra expressa, então, um sentimento que envolve afetividade".

Eu não sofro por saudade, muito menos morro. Eu não fico remoendo situações que já se foram, eu não fico sofrendo pelas pessoas que estão longe. Eu não revivo o passado com dor. Eu não vivo no passado ou onde não estou fisicamente.

Sim, gosto de recordar de momentos bonitos, gostosos e revê-los como vejo um filme, um filme de mim mesma. Rio de novo, sinto de novo e pronto. Lembro das pessoas, dos momentos que tive com elas, lembro-me com prazer e depois os deixo em paz. Eu não vivo lá. Eu não quero voltar para lá. Eu não quero que hoje seja como ontem. Eu "re-sinto", mas não sofro.

Alguns acham que isso é frieza, é não gostar das pessoas, é não se importar. Eu gosto e me importo com as pessoas, mas não preciso de todas elas, o tempo todo. Eu desejo que estejam felizes, que estejam curtindo a vida, e, se sofrem, isso me dói, mas eu não preciso da presença física delas, nem de monitorar suas vidas minuciosamente. Quero saber se estão bem, quais as novidades, quais os planos e no que posso ajudar. 

É bom viver novos momentos com velhos conhecidos, assim como com novos. Mas, vivo muito dentro de mim mesma e minha mente é tão cheia que os dias passam e não cabe tudo, mas quase tudo está lá, num bom lugar, embora escondido.

Sinto falta verdadeira apenas do que faz parte de mim todos os dias, e que no momento são meus filhos, enteados e marido. Sinto falta da rotina, do que espero, do que faço, do que tenho, não do que já perdi, do que já se foi, do que não é. Mas, não sofro.

Se isso é ter frieza, que seja. Não digo sentimentos por dizer. Não utilizo palavras levianamente. O que digo é o que vai em mim, e isso é o que vai. Ser frio em nossa sociedade nos remete a algo negativo, ruim, marginal, delinquente. Frieza é qualidade de psicopatas (os que usam palavras para forjar todo o tipo de emoção quente); frieza lembra frigidez sexual, tão em voga nos anos 70, condenando as mulheres "defeituosas" que não sentiam prazer. Ser frio é não se comover com o outro, com sua dor, com seu sofrimento. Ser frio é não chorar no jogo de futebol; ser frio é não quase morrer no velório, não ser carinhoso e não gostar de ser tocado. Ser frio é não ser humano (de acordo com nossos modelos de comportamento). 

Chega de sofrimento e de dor pelo que não tem que ser dolorido. Chega de desejar o que não se tem. Chega de sofrer por aqueles que já se foram ou que querem estar em outro lugar. Não quero dizer que temos que cortar laços, esquecer, deixar, ignorar. Que os encontros e as partidas sejam leves, pois são breves. Que saudades sejam sinônimos  de doces e belas lembranças, que sejam matadas e guardadas, que não sejam um fardo que vem do passado, ou do ausente, para interromper o fluxo da vida.


Comentários

  1. Texto para refletir muito...
    Em partes eu concordo em muita coisa, mas saudade não precisa ser dolorida, muito menos obrigatória...
    Eu por exemplo às vezes sinto saudade do que não viver do que não foi vivido... Também vejo a saudade como algo bom não como tortura... Como disse o seu texto é para refletir muito muito muito 🤔

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  2. Essa é a intenção, fazer refletir... Beijos!

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