O mundo da agonia



Eu não sei mais viver nesse mundo. O mundo é esse, o que tenho,  não posso mudá-lo; preciso aprender a viver nele, mas, como diria a minha avó, "é difícil ensinar novos truques a cavalos velhos". Talvez, esse sentimento faça parte dos saudosistas inconformados com as mudanças tecnológicas que sempre existiram em todas as épocas, provavelmente. Talvez eu seja parte da parcela infeliz, melancólica e depressiva da sociedade, que não consegue ver as qualidades do "novo". Será?

Por que eu não sei viver nesse mundo? 

Esse mundo me cansa. As pessoas desse mundo me cansam. Sou uma velha rabugenta, finalmente. O que posso fazer com o sentimento de terror que sinto ao perceber que as vivências estão se transformando drasticamente, assim como as formas de sentir, de interagir, de enxergar o mundo? Quais são as memórias que estão sendo construídas nessa nova dinâmica proporcionada por telas diante de nossos olhos? Quais as sensações que farão parte de nosso modelo de mundo?  

Os seres humanos estão cada vez mais destacados. Não, não se trata de se destacarem na sociedade, mas de se destacarem do resto do universo, ou seja, trata-se de se colocarem em uma condição de superioridade diante do resto do universo ao ponto de verem todas as coisas girando em torno da humanidade e em função dela, como se seres humanos não fizessem parte de um todo integrado e interdependente. Os indígenas tem muito a nos ensinar sobre esse destacamento e sobre o nosso verdadeiro lugar no mundo.

Telas. Ao acordar, a primeira coisa que fazemos é pegar a praga do telefone celular e ficar tempos inestimáveis lendo mensagens inúteis nas redes sociais. Para quem pode, na pandemia, o trabalho está sendo remoto, isso significa passar praticamente todo o dia em reuniões virtuais, grupos de WhatsApp, lives, cursos, seminários, webinars, tudo na tela. Para quem não pode, muitas vezes, dependem de um telefone para trabalhar, e quando têm uma folga, passam os minutos "livres" olhando outras coisas no celular. As crianças e adolescentes? Cada um tem um telefone (nas camadas da sociedade em que isso é possível). Despencam de aulas online para a o computador, do computador para a TV conectada à internet. E assim se formam hábitos, perspectivas, modelos, comportamento, e assim se desenvolve a capacidade cognitiva viciada e dependente. Sabemos que a desigualdade em nosso país impede que todos tenham o mesmo estilo de vida, que entre 10 famílias, 6 estão ameaçadas pela fome, mas é verdade também que o Brasil é o 5º maior mercado de smartphones do mundo. O telefone tornou-se uma necessidade real, e,  em países como a Índia, por exemplo, há mais celulares do que banheiros em casa, o que (apesar das peculiaridades culturais) demonstra qual é o valor que o aparelho, ou seja, a conexão com a internet adquiriu, tornou-se mais valioso que comida e higiene.

O nosso cérebro está extremamente exposto a milhares de informações difusas e rasas; isso nos leva à exaustão e cada vez fica mais difícil sentar-se e concentrar-se em algo específico e profundo, fazer conexões, criar. Até escrever, para mim, ficou mais difícil, porque não tenho forças, energias, porque há tanta coisa sendo dita por tantos, porque ninguém quer mais ler ou escrever textos com mais de um parágrafo ou alguns caracteres no Twitter. Tudo cansa. 

Nessa zumbilandia Matrix em que vivemos, não existe diferença entre realidade e virtualidade; não sabemos mais se estivemos em algum lugar ou vimos fotos, vídeos. Não sabemos também se aquela notícia, que já foi desmentida, foi mesmo desmentida, se os cientistas falam a verdade, se as instituições existem e são confiáveis, pois tudo é nebuloso, raso, fugidio, virtual, como em um sonho ou delírio de um louco. Pisamos em um chão de giz.

Preferimos ficar dentro de cavernas escuras olhando para telas, como em Platão. Sair cansa, sua, queima a pele. Interagir ao vivo é difícil, muito ágil, não tem como ignorar a mensagem e responder mais tarde. Ao mesmo tempo, todos estão extremamente ansiosos e  esperam que suas mensagens sejam respondidas imediatamente, escravizando e enjaulando todos em seus aplicativos. Humanos ansiosos e inseguros.

Esse é o mundo. Um mundo de escravidão e de gente curvada. Um mundo de gente ansiosa por ter seus dispositivos grudados em sua mão, que não tolera o silêncio, não tolera a si mesmo. Um mundo que não tolera o outro.

Quem sou eu? Um ser humano que também já foi escravizado e luta todos os dias para deixar de ser. Eu quero sentir o cheiro das flores e ver o por do sol ao vivo. Eu quero sentir o aroma que distingue as cidades, eu quero ficar embaraçada e exausta de tentar interagir de vez em quando. Eu quero ficar tranquila tomando um café, sem pensar que estou perdendo alguma novidade inútil. Eu quero ficar longos momentos sem me preocupar com o amanhã. Eu quero contar histórias para as crianças. Eu quero plantar e ver o desenvolvimento da planta. Eu quero ter o poder de desligar a tela e esquecer-me dela. Eu quero ter o mínimo de informação possível, mas todas as que sejam relevantes. Eu quero ser livre, e mais que tudo, eu quero ter paz. Espero conseguir, mas também espero não ficar sozinha em meio aos que já se transportaram para o mundo da agonia.





Comentários

  1. Amei o seu texto. Expressa exatamente o que sinto, consegui sentir daqui a agonia de viver tudo isso. E amei o nome do blog "Mulher Alienígena" porque me sinto assim diversas vezes, como se não fosse daqui.

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