Professor, você não é um super-herói, nem tem que salvar coisa nenhuma!

 

Estes tempos estão tirando a minha vontade de escrever e até a força das minhas indignações, não que não as viva e reviva intensamente e diariamente, mas a sensação de impotência tem me deixado cada vez mais mumificada diante de tantos absurdos que temos presenciado nos últimos tempos. Mas, embora pareça inútil, não posso deixar passar em branco a última matéria que vi no Jornal Nacional.

Todos os dias temos longas conversas em família sobre diversos assuntos, e um deles é sobre como as pessoas deixam-se levar por situações desfavoráveis por medo, ignorância, preguiça ou comodismo. Outro, é sobre como os professores no Brasil assumiram um papel quase que sacralizado na sociedade, como se a docência fosse um sacerdócio. Os dois assuntos estão intimamente ligados.

Antes de mais nada, por favor, leiam o livro do Paulo Freire que fala sobre as implicações de se assumir um papel de “tia”, ou seja, de assumir um papel de membro familiar no trabalho de docência. Resumindo, quando um professor assume esse papel de parentesco, ou maternal (que muitos professores, especialmente professoras, assumem em relação aos seus alunos), eles estão assumindo deveres que são atribuídos a esses familiares. Sabemos, por exemplo, que o papel da maternidade é considerado ainda como um dever sagrado em nossa sociedade, a mãe é vista como um ser que precisa estar sempre disponível, presente, amorosa e abrir mão de si própria pelos filhos; quando um professor assume para si esse papel em sua profissão, está assumindo também estas imposições sociais, o profissional veste-se de “santidade materna” que deve lutar com todas as garras pelas suas crias, ou melhor, seus alunos. Assim sendo, os professores são cobrados pela sociedade e por suas próprias consciências todo o tempo, como se nunca fizessem o suficiente, e não fazendo, sentem-se indignos, em falta, como se fossem pecadores.

Educação é coisa séria demais, e complexa demais. A educação existe para instruir e consolidar valores, o que é tido como dever primário da família para com os seus jovens, e, muitas vezes, delegado às instituições públicas e privadas. O professor, neste papel de educador, também é um educando, pois precisa estar aberto para as possibilidades de aprendizagem que a interação com o diferente oferece. O professor precisa ser sensível às necessidades de seus alunos, às suas peculiaridades, precisa saber interagir com afeto e interesse genuíno de maneira que possa ajudar a construir o conhecimento e a capacidade de reflexão confiante e dialética. O professor precisa ter sabedoria suficiente para criar um clima agradável, amistoso e propício para que seus educandos sejam aptos a refletirem sem pressões desnecessárias. Um professor precisa ser um indivíduo confiante, confiável, sensível e comprometido com a educação, mas um professor não é um parente. Um professor NÃO tem que abrir mão se sua vida, sua privacidade, seu tempo pessoal para atender o tempo todo aos seus alunos. Um professor NÃO tem que fazer sacrifícios, NÃO tem que tirar do próprio bolso, NÃO tem que fazer loucuras, um professor NÃO é um santo. Um professor é um profissional que passou anos em uma faculdade estudando para ajudar pessoas a se tornarem pessoas. A profissão do professor é, provavelmente, a profissão mais importante da sociedade, pois é a profissão que influencia diretamente na construção e no desenvolvimento cognitivo e social dos indivíduos, e não há nada mais importante e capaz de mudar o mundo.

Quando alguém assume esse papel de mártir, de santo, está abrindo mão de direitos e de lutar por outra realidade. Quando um professor “dá um jeito”, abre mão de sua vida, de seu dinheiro, de sua privacidade, como se não fosse mais que sua obrigação, está dando permissão de ser tratado como capacho pela sociedade e pelos governos. A importância do papel do professor não pode ser barateada e transformada em peregrinação em rumo a beatificação.

Vamos à reportagem. Inicia-se com a volta parcial de alguns alunos da rede municipal do Rio para as escolas, em seguida, é dito que uma das preocupações de uma professora é fazer com que todos se sintam presentes:

“_Eu gravo vídeo, eu mando áudio, eu escrevo, usando as ferramentas da prefeitura (…) e o WhatsApp, que está sendo uma das ferramentas mais importantes pra gente no momento”.

Pensemos no que implica essa fala, resguardando as condições atuais que são de pandemia e tudo o mais: para a professora, é dever utilizar de todos os meios, além dos que são oficiais e criados para o trabalho, para fazer com que o aluno não se sinta desamparado, como se fosse o dever individual de cada profissional. O professor precisa ficar disponível todo o tempo (não apenas em seu tempo de trabalho), para amparar os seus filhos, digo, alunos, utilizando, muitas vezes, seu meio de comunicação individual e privado, o WhatsApp.

O momento em que estamos vivendo é impar, e o acolhimento é necessário, pois há muito estresse e sofrimento. É preciso novas maneiras de pensar e de se trabalhar, mas como acolher sem ser invadido?

Em seguida é dito que outra escola percebeu que os alunos estavam precisando de atenção, afeto e até de comida, foi quando os profissionais se mobilizaram para realizar uma campanha para arrecadar alimentos. A escola, como todos dentro da sociedade, precisam estar inseridos e atuantes nesta sociedade e não há nada de mais em se realizar campanhas para que o os alunos dessa escola tenham melhores condições de vida, mas de quem seria, prioritariamente, esse papel de fornecer ajuda emergencial em uma crise como essa?

Temos ainda a fala de uma professora com 30 anos de serviço:

_ “O celular passou a ser veículo de trabalho, eu atendo o celular o dia inteiro, e às vezes é, simplesmente para um bate-papo, por que o aluno sente falta disso.”

Em seguida, outra professora, ligando para aluno:

_ “Oi Joice, bom dia, tudo bem? E… já acordou, já está bem? Manda uma resposta aqui pra mim, que eu estou aguardando você. Beijo.”

E outra:

_”Oi pessoal, tudo bom? e aí, já fizeram a atividade de hoje?”

A reportagem termina com outra professora dizendo que temos que estabelecer uma afetividade, uma humanidade, porque senão, nada resolverá. Como foi dito acima, sim, o professor precisa ter sensibilidade, afetividade e disponibilidade, mas não a cada segundo de sua vida, como se sua vida resumisse-se em trabalhar. Não levanto aqui o mérito de quem sente prazer em ajudar o próximo, em ser útil, ou tem o trabalho por ele mesmo como um valor grandioso, ou que não tenha coisa mais valiosa para preencher o tempo, essa não é a questão; a questão é a normalização da submissão indiscriminada e irreflexiva, a servidão rebaixada, transvestida de santidade, o que impede com que os profissionais vão em busca de melhores condições para eles, e, para esses alunos, os quais tentam ajudar individualmente ao invés de lutarem por uma realidade melhor para todos. Quando cada um assume para si esse papel de “melhorar a educação” ou “ajudar um aluno” (não que muitas vezes não precise realmente ser feito)o professor vai tapando buraco, sendo a bucha do canhão, dando o sangue e recebendo desprezo da sociedade. Para finalizar, as professoras aparecem vestidas com camisetas de Mulher Maravilha. Há coisa mais significativa que essa?

Só para ser justa, acredito realmente no amor e na boa vontade dessas professoras, e não duvido que elas podem ter ajudado a muitos alunos, mas precisamos mudar a maneira como lidamos com a docência para que a sociedade mude a maneira como ela lida com o professor.

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