O cálice - por que estamos vivendo esse caos?


Estamos vivenciando um fenômeno de grande valor histórico para a nossa sociedade brasileira, quando a intolerância chega a um grau tão elevado que tornam-se naturais todas as formas de agressão e expressão de ódio, como o desejo de exterminar o outro literalmente por ser diferente ou adotar opiniões que não expressam os mesmos ideais. Estamos assistindo a cidadãos comuns vociferando em todos os tipos de ambiente, reais ou virtuais, exaltando grandes ditadores da história e admirando-lhes suas estratégias de matança de inimigos. Pessoas que se dizem defensoras da família estão saindo para as ruas e para as portas das universidades com o claro interesse de humilharem e ameaçarem àqueles que representem o que eles negam e odeiam, como a homossexualidade, o socialismo, e a luta pelos direitos de raça e escolha de gênero. Essas pessoas estão se sentindo no direito de determinar o que o outro deve ser e como deve pensar, querem ditar regras para a sociedade, impô-las, nem que para isso seja necessário matar a todos que possam representar risco para a tal "sociedade ideal". Essa não é a primeira vez e provavelmente não será a ultima que esse fenômeno ocorrerá (até que o ser humano finalmente se extermine da face da terra), e não me canso de me perguntar sobre como a situação chega a um ponto onde os seres humanos, por não tolerarem as diferenças, passam a tolerar barbaridades como a tortura e o assassinato de outros. Obviamente, cada fenômeno desse se relaciona com o seu momento, com a história e a cultura da sociedade, mas é interessante notar como as sociedades se desenvolvem dialeticamente e seguem aparentemente os mesmos padrões. No caso específico do Brasil, penso que há algumas questões a serem consideradas para a tentativa de compreensão do que estamos vivenciando, e aqui as coloco:

A questão da memória

O nosso país não é ainda um país que prioriza a memória. Didaticamente houve mudanças, de acordo com os parâmetros curriculares, que se tornaram mais interdisciplinares e passaram a valorizar mais a questão das minorias, ou seja, daqueles que estavam por baixo na história oficial, como os indígenas e os africanos que foram escravizados. A própria mudança na maneira de nos referirmos a essas pessoas, que antes eram tratadas apenas como  "os escravos", mostra-se como uma mudança semântica de grande importância para para a caracterização desses seres humanos, que não são escravos, mas foram escravizados. A história da ditadura também é ensinada nas escolas, assim como a pré-história e a Idade Média, ou seja, não há uma enfase nessa parte tão significativa da nossa história na educação, assim como não está muito presente em outras manifestações sociais, como acontece em outras sociedades. Os torturadores não foram condenados, documentos desapareceram, a ditadura não foi maciçamente reconhecida como tal, ou seja, como algo que não deveria ter acontecido em uma sociedade democrática. Dessa forma, é possível que se questione o teor dos fatos, dos ditos, dos escritos, dos contados, é possível dizer que não houve golpe, que não houve ditadura, que não existiu tortura, é possível ainda dizer que os torturados eram vagabundos e baderneiros que mereciam tal punição se  ela tiver existido. Essa questão não foi devidamente finalizada e apesar de existirem inúmeros materiais sobre o assunto, está desaparecendo da memória. Aliás, estamos assistindo às pessoas dizerem que o passado já passou e que não é importante. A memória está morrendo nessa era digital, por vários motivos: 

_ O desinteresse das instituições;
_ O desinteresse familiar (ninguém mais se senta para contar histórias)
_ O desinteresse gerado pela velocidade das informações novas e que fazem com que tudo pareça velho e desatualizado, deixando-nos obcecados pelo presente.

Porém, devemos lembrar que sem memória, não há identidade, não há como nos situarmos no mundo, no tempo e no espaço, tornamo-nos vulneráveis à qualquer outra forma de identificação que nos possa envolver, ou seja, desenvolvemos uma identidade frágil e volúvel.

A questão da identidade

Como disse Stuart Hall, a identidade na pós modernidade é fragmentada e plural, e como diria Goffman, estamos sempre representando nas diversas circunstancias de nossas vidas. As representações nos servem para a aceitação social, ou seja, para a preservação do "eu", para que a nossa integridade identitária seja preservada, para que o eu esteja a salvo, o eu físico e o eu social. Esse sentimento tão primário e vital da preservação do "eu" é demonstrado de diversas formas, considerando que para sobrevivermos nesse mundo plural e fragmentado nós necessitamos de ferramentas diversas, que nos protejam e nos projetem tanto fisicamente como socialmente. A questão dos grupos é uma dessas ferramentas primárias, quando podemos nos identificar, ser identificados, nos projetar e nos fortalecer, assim com legitimar nossos discursos; fazer parte de grupos é vital para a existência física, social e, virtual. Se conectar de grupos significa fazer parte de algo, se tornar algo, algo diferente de outras coisas que são representadas por outros grupos. Ser uma coisa, se reconhecer como pertencente de algo é reconhecer que não faz parte de outra coisa, é negar outra coisa. Isso diz muito em nossos tempo, aliás, em todos os tempos. O outro grupo poderá conviver ou representar  algo que mereça ser eliminado.

A questão da mediação

O Facebook deu voz a todos, aos ricos, aos pobres, aos semi-analfabetos, aos letrados. O Facebook e todos os outros meios virtuais, os blogs, o Instagram e as caixas de comentários das notícias. A velocidade de informações e o volume se tornou incontrolável e a necessidade de consumo também, e nessa velocidade, perdemos a noção de tempo e a necessidade da legitimidade. Junto com tudo isso, veio o questionamento escancarado 'dessas legitimidades', ou seja, das instituições e das autoridades. Tudo e nada passou a ser confiável, a autoridade passou a não importar, o que importa são as ideologias contidas nas notícias e não a origem delas. Qualquer um poderia ter a legitimidade para dizer o que quisesse, dessa forma,  surge uma crise de realidade e a tendencia de haver recusa do que não parece ser favorável ou agradável.

A questão da autoridade

Aconteceu na sociedade brasileira a desqualificação das entidades educacionais, ou seja, houve a construção negativa imagem da profissão do professor, assim como das instituições acadêmicas. Corroborado pela fala de Fernando Henrique Cardoso, "não sejamos vagabundos num país de miseráveis", o tratamento do professor pela população, passou de respeito ao detentor de saber para raiva por um "vagabundo privilegiado que trabalhava meio dia e tinha duas férias por mês". As universidades passaram a ser "centros de degenerados" que "não tinham mais o que fazer". E assim foi-se destruindo a imagem de autoridade científica daqueles que faziam parte do mundo acadêmico. A imagem da imprensa também foi dilacerada (não sem razão real e histórica), as grandes autoridades passaram a ser vistas como centros elitizados ou que guardavam interesses espúrios, ou seja, não confiáveis e não representativos. No lugar dessas instituições foram colocadas quaisquer outras coisas que pudessem dizer o que fosse agradável, palatável e compreensível ou que representasse discursos que há muito foram calados e que agora poderiam ter uma voz, uma autoridade.

Bem, dito isso, podemos perceber que o cenário estava totalmente propício para o caos que estamos vivendo. Nossa sociedade não preserva a memória, não conhece a história, não acredita em fatos, sente a ameaça do "eu" e, consequentemente, dos grupo a que pertence, e encontrou outras autoridades que deram legitimidade aos preconceitos que há muito andavam escondidos e que agora se levantam com toda a força contra a ameaça do discurso hegemônico que estava sendo ameaçado pela crescente onda de lutas por direitos das ditas minorias.  Nossa sociedade, hoje, está mostrando toda a podridão que estava guardada, todo o ódio, o preconceito e a intolerância, a ponto de pretender eleger um candidato sem nenhum preparo, que prega o ódio, a intolerância, diz que o passado não importa,que as minorias devem se curvar e que devemos matar quem não concordar com suas regras. A nossa sociedade está aceitando que as leis não sejam respeitadas e que a força seja utilizada para punir a todos que pensarem de forma diferente. A nossa sociedade está doente e não sabemos ainda quando virá o remédio. 

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