Quando
estamos imersos em um trabalho de pesquisa e o objeto de estudo, assim como as
teorias que se relacionam a ele, passam a fazer parte fundamental de nossa
existência, encontramo-nos em um estágio emblemático em que muitas reflexões
podem surgir de diversas maneiras; permito-me a mencionar um sonho que tive em
uma dessas noites agitadas e que, ao acordar, nomeei-o de “sonho sobre a
identidade”. Além de ser um dos sintomas do quão se torna perturbador e
profundo o processo de pesquisa, a narrativa de um sonho tem muito a nos dizer
sobre nossos medos, desejos e sobre reflexões em andamento, as quais surgem de
maneira simbólica, como nos revelou Freud em seus escritos.
Esse
foi um dos sonhos mais belos que já tive, esteticamente falando; iniciou-se em
plano aberto, mostrando algumas casas de alvenaria em terra árida. O clima e a
iluminação nos remetiam ao oriente médio, mas, em meu sonho, tratava-se da
cidade em que cresci, Ipatinga. Eu estava lá para fazer um documentário sobre
um grupo de jovens que se destacou pela originalidade da música. Juntamente com
algumas pessoas da comunidade, sentei-me na beirada do asfalto e de lá
observávamos, por entre pedras, os jovens negros e bem produzidos, produzindo
um videoclipe; eles se divertiam na areia da praia, com o mar ao fundo (em
Ipatinga). Ouvíamos o som da música que misturava reggae e Luiz Gonzaga. Passamos
para outro plano, como se estivéssemos em um filme; agora estamos no meio de
uma ruela escura, onde mal podemos distinguir os itens da paisagem negra. Uma
menina vestida com short e mini blusa, sem seios, descabelada e suja, nos fala.
Ela seria a possível informante que nos ligaria aos personagens do grupo. Sua
fala era triste para nós, mas era apenas a realidade para ela; contou-nos sobre
seus filhos, que estavam esperando sozinhos e por isso tinha pressa; disse que
um dos integrantes tinha ido para a França e esquecido a família na favela, que
outro tinha irmãos presos, e ainda, que um terceiro, deixava os pais passarem
fome. O filme do sonho agora mostrava um barraco escuro e entulhado, onde os
integrantes do grupo chegavam, alegres e falantes, e, rapidamente, tiravam seus
sapatos e tênis de luxo para calçarem os confortáveis e baratos chinelos e
sandálias. Não precisavam mais representar, podiam ser eles mesmos e ficar com
suas próprias identidades. A última cena de meu sonho, antes de ser acordada
pelo sair do meu filho para a escola, foi a de um outro barracão escuro, onde
uma japonesa com o rosto pintado de branco e vestida de gueixa sentava-se a
espera de seu marido, um rapaz negro do grupo musical. Ele aproximou-se dela e
disse algumas poucas palavras em português, ela sorriu e disse sim, com a
compreensão de seu mundo às palavras do mundo dele. Jamais falariam a mesma
língua. Acordei pensando sobre o que aquele sonho queria me dizer e sobre o que
eu teria a dizer sobre aquele sonho.
Os
integrantes podiam sair da favela, mas a favela nunca sairia deles, no sentido
que suas identidades estariam eternamente ligadas ao que eles vivenciaram em
seu processo de crescimento e formação individual e coletiva. O ato de retirar
os sapatos quando se encontravam em seu ambiente familiar, onde se sentiam
confortáveis, onde tinham permissão para serem o que o interiormente sentem que
são, nos faz pensar sobre os papéis que precisamos representar em nossas
rotinas, ou sobre as identidades que desejamos ou precisamos adquirir. O mesmo acontece
com alguém que é habituado a comer frango com as mãos e precisa adotar uma
forma de agir diferente do que lhe é natural quando come em um restaurante, ou
quando precisamos ser polidos ao perceber que o atendente de um local é alguém
de quem não gostamos. Trata-se do controle do corpo a que se referia
GIDDENS(2002), quando o corpo age controladamente a fim de representar um papel
de acordo com os comportamentos aprendidos socialmente. Nesse ponto, a memória
e a identidade estão intimamente ligadas, pois é através da memória das
práticas sociais, e de todos os elementos que fazem parte da memória coletiva e
social de uma comunidade, é que as identidades são construídas e significam.
Mais reflexões a posteriori.
Mais reflexões a posteriori.
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