Perdas são sempre perdas, mas algumas marcam a alma, transformam vidas, e eu sei bem disso. Hoje trago o testemunho de uma amiga que perdeu sua mãe, e sempre é cedo demais. Ela nos fala sobre seus últimos momentos, sua conexão e sobre o que a perda significou em sua vida. Que a luz esteja sempre ao seu lado.
01/03/2018
– Olhos que se calaram.
Isso
sempre foi assim. Não sei contar como começou.
Nós
falávamos muito, por dias, por horas, éramos capazes de falar durante toda a
viagem minas/sp, que sempre fazíamos e durava cerca de 10 horas. Mas nossa
melhor comunicação sempre foi com o olhar, e nossos códigos todos (“veja que engraçado; nossa que ridículo;
vamos fingir que estamos acreditando em tudo; você está errada, mas que bola
dentro hein; a comida está boa; nossa vamos comer isso pra não fazer desfeita”).
Nada precisava ser dito quando não estávamos sozinhas, os olhares bastavam.
E
então, após uma piora, ela foi para o
hospital e nossa médica de confiança em SP aconselhou que a mantivéssemos lá,
pois eram mesmo os últimos dias. Nos bastidores, um tentativa insana de fazer o
transporte aéreo para São Paulo para que ela ficasse um pouco mais conosco.
Mas
eu sabia, eu sabia de tudo, a Dra. Dani já tinha me explicado como seria o fim,
mas eu tinha uma missão a cumprir, missão que assumi em 13 de março de 2012, que
era a de garantir a ela o melhor tratamento e bem estar; meu melhor desempenho
e esforço, nada foi capaz de me parar. Nossa comunicação visual foi ficando
cada vez mais apurada, portanto, quando eu não podia me expressar honestamente
a ela, eu me perdia e voltava num olhar de “eu
sei o que eu estou fazendo, só confia”, ela confiava com o olhar e eu ia
atrás de minha missão.
Minha
missão incluiu chamada de viatura policial no hospital para que lhe fosse
garantido um tratamento digno, não a simples espera de um corpo parar. Ela
tinha de ter dignidade até o final, pois
durante toda sua vida nunca foi capaz de maltratar qualquer pessoa. E quando
digo nunca, é nunca. Nunca sequer reclamou com algum enfermeiro cansado, ou de
um exame que demora, frio, calor, nada. Isso, cuidar dos “detalhes”, estava
dentro de minhas atribuições, mesmo, ela nem pedindo, e muitas vezes, nem
sabendo.
No
segundo dia de internação, cedo, as enfermeiras vieram para dar-lhe banho, ela
estava indisposta, mas nos olhamos e sabíamos que daríamos um jeito naquilo.
Pedi que saíssem pois iríamos fazer à nossa moda: banho de cabeça, que era
aquele banho que incluia lavar aquele cabelo enorme e passar um tempão jogando
água uma na outra. Nunca vou me esquecer daquele cheiro de banho tomado (nem
quero). Queria
colocar pijama decente, nada de coisa de doente, e assim fizemos; quando as
enfermeiras voltaram, estávamos sentadas conversando, mas logo mudamos nossa
linguagem, pois elas não sabiam da missa, um terço sobre nós.
Mesmo
quando ela se irritava com alguma coisa, quando suas veias sumiam e eu saia
feito louca atrás de uma luva de borracha e água para fazer bolsinha para
aparecerem as veias, ou qualquer situação, dávamos um jeito que sempre
terminava em risadas, piadas, ligações para contar dos detalhes para os outros,
enfim, ela ia piorando, mas não a nossa
comunicação, nem nosso senso de humor.
Já
naquela tarde, ela foi perdendo a capacidade de comunicação oral, mas lá
estávamos, conversando pelos olhos e eu endossando os assuntos com a fala.
“
Mãe, não se esforce pra falar, basta me
olhar que eu já sei o que quer” “ Mãe eu
sei que está pedindo para eu tirar esse troço do seu nariz, mas te ajuda a
respirar, temos que ir embora esse fim de semana, Dra Dani nos espera em SP”.
Na
manhã seguinte ela me pede chorando com os olhos para tirar o respirador, mas
eu peço só um pouquinho de paciência, logo mais a Dra. Dani mandaria tirar.
Viro
de costas e penso, sim mãe, eu quero tirar isso, quero sair daqui te empurrando
numa cadeira de rodas no nosso melhor estilo, mas não dá.
Nesse
dia, enquanto ela estava adormecida, o banho foi de cama, aquilo para mim foi
inaceitável, não pelas enfermeiras que sabem fazer aquilo com uma delicadeza e
rapidez incrível, mas, como assim? O momento do banho era nosso momento há
meses, tiraram isso de nós.
Quando
ela acordou com a camisola do hospital, imediatamente eu quis trocá-la, mas ela
estava rendida e cansada demais.
“
Mãe, presta atenção que eu estou lhe
falando, olha pra mim”. Os demais parentes chegaram e ela tentou esboçar
palavras e escritos, mas quando ela estava cansada, olhava para mim e eu dizia
a todos o que ela estava querendo falar.
Nesses
momentos eu a deixava como protagonista, espalhando sorrisos desconexos, amor,
carinho e luz, e eu no canto da sala era a intérprete, quando necessário, desempenhando
minha missão, lendo e relendo prontuários, escalas de enfermeiros, próximos
medicamentos, etc.; isso me distraía, me permitia dar uma saidinha para gritar
de dor de alma e bater em paredes até a mão sangrar, e voltar ao quarto como se
tivesse ido buscar algo para a gente comer.
“Ei, o que é isto? Alimetação parenteral
?” Sim, é preciso. Bom, pelo menos ela está dormindo, acordará cheia de
perguntas, e é melhor eu me preparar para responder (ela não ingeriu nem metade
do pacote até tudo acabar).
“
Mãe? Que preguiça é essa? Vamos acordar,
olha pra mim, tenho coisas pra te contar”, ela com muito esforço tentava
ouvir minhas coisas importantíssimas sobre os cachorros, as plantas, as
mensagens da Dra. Dani, “vamos parar de
dormir”.
Sua
respiração vai piorando, até que colocam um inalador extremamente barulhento,
mas nesse momento eu acho que ela já não ouve, mas me olha ainda e pede pra ir
embora pra casa, olha pra porta com uma lágrima no olho.
Sei
tudo o que está acontecendo, mas ela nunca me viu queda; li, cantei hinos,
falei bobagens, meu pseudopai e irmão
foram embora, ela, com os olhos abertos e pouquíssimos movimentos: “ podem ir, amanhã é outro dia”. Ficamos
eu e Adriano, iríamos ter nossa conversa noturna pois eu já estava recomposta
para continuar a missão.
Volto
a atenção para aquela guerreira e seus olhos estão abertos, mas eles já não me
falam mais. Arranco aquele respirador e a abraço fortemente para ouvir sua
respiração e coração.
“ Mãe, seu coração está batendo, mas sua
respiração não consigo ouvir”
Desligo tudo o que é aparelho que possa estar me enganando.
“Sim, o coração bate, não saio daqui até que
tudo esteja acabado, como eu te prometi, vamos vencer juntas”, e fico alí,
pedindo silêncio ao mundo, esperando que o coração pare junto ao meu ouvido e
ao meu choro mudo.
Olho
no relógio, sábado, dia 30 de março 19:30, ok, pode chamar o médio para atestar
seu óbito.
“
Mãe,
te faço mil promessas, mas agora irei fechar seus olhos e por algum tempo, não
vamos nos falar mais”
Sigo
minha missão, até hoje, custe o que custar sigo minha missão de te honrar
enquanto houver vida aqui.
Sei
que sofro até hoje de dois lutos: da minha alma gêmea, minha mãe, ser de luz
que me deu amor pra uma vida inteira; o outro luto é o da perda daquela pessoa
que morreu com ela alí também.
RIP
– Mãe RIP – Talita
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