Quando perguntam-me sobre a minha infância, digo:
Levantávamos cedo e íamos para a escola caminhando. Nós, as mães e os colegas da rua, íamos conversando e planejando as próximas brincadeiras. A escola era rígida, não podíamos entrar sem as camisinhas de botão brancas e as sainhas ou calças de tergal azuis. Muitos de nós, na pobreza mais pobre daquela época, levávamos nossos materiais em sacolas de feiras ou sacos de plástico de arroz. A minha merendeira também era de plástico e levava café com leite e pão com manteiga; tinha estojo de madeira que amava e meus lápis duravam a vida toda.
Uma vez vivemos uma epidemia de piolhos.Todos tinham muitos, muitos piolhos, em alguns, víamos os piolhos nadando até às sobrancelhas e os cabelos pareciam estar cheios de farinha. As mães passavam óleo de soja com fubá, arruda e até Detefon, veneno de matar insetos peçonhentos. sobrevivemos.
Eu e minha amiga inventávamos muita moda. Brincávamos de fazer comida, a cozinhadinha, de fazer peça de teatro, de fazer festinha. Brincávamos com os brinquedos, com os jogos da memória, com os resta-um. Aprendi a tocar flauta sozinha olhando as instruções, mas aprendi com as mãos trocadas. Brincávamos com os meninos de futebol, de birosca, discutíamos, pegávamos cigarras e as prendíamos nos vidros, fazíamos pulseirinhas com linha e coisinhas que caíam das árvores, das quais não sei o nome até hoje. Brincávamos também de roda, corda, elástico, arco, carro feito de cabo de vassoura, tampa de cera e rodinhas de carrinhos. Brigávamos um monte, ao ponto de meu irmão causar um ferimento na sobrancelha de um colega e precisar de pontos.
Mais tarde, me dediquei a limitada biblioteca do meu pai, onde havia um compendio de literatura e umas enciclopédias sexuais bastante ultrapassadas. deitávamos nas calçadas durante as quentes noites de verão e ficávamos a ver as estrelas e a pensar na nossa infimidade, fazendo pedidos às estrelas cadentes. Comprávamos fichas telefônicas e ligávamos para as rádios para pedir música do RPM em programa de música sertaneja. Dançávamos ao som de Menudos, fazíamos aula de Jazz, as mais mais velhas faziam permanente, descoloriam os pelos e inventavam cremes mirabolantes de cenoura, beterraba e óleo para se bronzearem. Eu chorei por que não podia ter um bebezinho careca. A bisnaga de pão era deliciosa com a manteiga derretendo, não era pão cheio de fubá como hoje. Aliás, aprendi na vida que as coisas ruins sempre tem fubá, maisena e TNT.
Pegávamos peixinhos na lagoa e levávamos para a casa, brincávamos com o cachorrinho, rodávamos bambolê. Aprendi a andar de bicicleta, mas só sabia virar para o lado esquerdo. Dançávamos lambada com a vassoura. Comíamos gelatina rosê, apostávamos corrida, criávamos cenários, tínhamos uma caverninha secreta e andávamos de carrinho de rolimã. Corríamos a léguas quando víamos os paquerinhas vindo lá embaixo na rua e ouvíamos histórias de assombração. Ensaiávamos quadrilha e fazíamos a festa junina, líamos quadrinhos; fazíamos cobrinhas de meia para assustar os transeuntes (que palavra old!) e brincávamos de queimada. E olha que nós tínhamos uma vida bem monótona, sem familiares na cidade, não saíamos da rua Carmem Miranda.
Quando no futuro perguntarem a esses nossos filhos como foi a infância deles, eles dirão:
Ficava deitado mexendo no celular, jogando vídeo game ou mexendo no computador, enquanto meus pais ficavam livres pra fazer a mesma coisa. O meu corpo é atrofiado assim por que nunca movimentei muito, e essa corcunda já é desde aquela época. Eu ganhava muitos likes das pessoas nas coisas que postava, pode olhar lá no histórico. Aprendi muita coisa sobre o mundo no Google. Meus ídolos eram os irmãos Neto e o Whindersson. Rebuliiiço! Livros? Odeio. Pra quê perder tempo se está tudo na internet? Amigos? tenho uns 5000 no Facebook. Planos? Sei lá, só tenho 37 anos. Por enquanto está bom assim.
Apocalipse zumbi.
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