Eu penso demais. E nesse pensar demais, racionalizo tudo, até o que não deveria ser racionalizado. Mas, embora pense e racionalize, há situações que fogem às minhas tentativas de controle e me torno só emoção. Esses momentos são aqueles em que me sinto agredida profundamente e sinto minha dignidade sendo usurpada. Também deixo-me levar pela emoção quando permito a mim mesma entregar-me ao que considero essencial em minha vida.
Todos possuem seus essenciais, por que deles necessitam para valorar a vida e torná-la plausível. Elegemos nossos deuses sob diversas circunstanciais sociais, pelos exemplos, pelas emoções que nos causam, pelas certezas que nos proporcionam dentro de suas lógicas na sociedade a que pertencemos, pelos rituais que dão a noção de circularidade em nossa existência, a circularidade que nos presenteia com o sentimento de início, meio e fim, de renovação a cada novo ciclo. Talvez, esse seja o meu ponto, não vejo mais a vida em ciclos, mas em uma linha reta.
Para mim, o ano novo não é novo, mas a continuação de algo que começou há muito tempo. O meu aniversário não representa mais um ano de vida e um novo ciclo, apenas me diz que a linha está chegando ao fim. Não espero pelo próximo carnaval para viver novamente como se não houvesse amanhã, nem por um novo título de futebol. Não penso que a semana santa irá renovar a minha fé e salvar-me. Não vejo importância em bailes de formatura, mas ao que será realizado, e ao trabalho que já foi realizado. Comemorações e rituais são importantes? Sim! Todos os dias. Necessitamos pertencer a algo maior, a um grupo; precisamos de memórias e marcos, ritos de passagem para materializar as mudanças individuais e sociais. Mas a vida é construída a cada segundo. E os segundos não voltam, eles seguem em linha reta.
Paixão e sagrado, dois lados da mesma moeda. Em outras palavras, são os deuses que escolhemos, a quem veneramos e temos como intocáveis. Assim como os exemplos assistidos atualmente nas discussões infinitas, infindáveis e infrutíferas sobre direita e esquerda, podemos também usar diversos exemplos de paixões retratadas pela religião, o futebol, o ídolo adolescente, o ser amado. Esses são alguns exemplos de deuses intocáveis, sagrados e defendidos com todos os argumentos tidos como racionais e irracionais. Sagrados.
O ser humano pensa demais. Para fugir de sua própria racionalidade, criou guetos para poder ser o ente animal e emocional que nunca deixara de ser. É nesses guetos, defendendo algo que elegeu como parte de sua identidade, que lhe é permitido se transformar, dando vida a algo que fica reprimido no restante do ciclo. O futebol e o carnaval dizem muito sobre isso e sobre o ser humano brasileiro. Cada cultura possui seus subterfúgios, e a nossa possui essas duas grandes válvulas de escape, que trazem sentido para as vidas dos pobres mortais, que sempre esperam pelo novo ciclo, um novo titulo, um novo carnaval. É nesses eventos que se pode agir sem recriminação e ao comando dos instintos, liberar o que fica reprimido pela sociedade.
Eu ainda não sei quais são meus deuses. Luto todos os dias a procura de certezas reconfortantes e que possam me dar a noção de circularidade, que ao fim do ano, novo ano recomeçará cheio de esperanças e que tudo será diferente. Gostaria de ter esperanças de que a morte não é o fim. Gostaria de ser apaixonada por algo a ponto de perder o juízo. Não, queria não. Mas queria ter pequenas paixões diárias, que pudessem alegrar o meu pequeno ciclo de levantar e dormir. Talvez eu já as tenha, na medida em que tento construir o meu dia sorvendo os pequenos acontecimentos. Na verdade, muitas vezes em meu dia sou passional, especialmente quando tocam nos meus pequenos sagrados, que são meu espaço, meu tempo e minha família.
Não me apetece morrer por paixões, embora muitos coloquem todo o sentido da existência na defesa delas, como os patriotas que morrem em guerras, os revolucionários, os homens bomba. A diferença entre o ser humano e o animal (categoria que não exclui o humano) é que ele, o ser humano, racionaliza sua animalidade, usa os instintos racionalmente. Nenhum animal, que eu saiba, morreria por ideais (não importa a natureza do ideal, pois todos possuem o mesmo papel e lugar na vida do indivíduo). Nenhum animal sofreria, ou defenderia um símbolo representativo de um grupo. Interessante pensar que até na suposta irracionalidade há uma razão.
Por fim, extremos são sempre perigosos, porque a certeza gerada por uma paixão traz colada em suas costas a certeza de que os outros deuses não são verdadeiros, dignos, merecedores da mesma sacralidade. Até mesmo a certeza de que não deveriam existir deuses é algo perigoso, na medida em que exclui tudo e deixa nada no lugar. É a certeza do nada contra tudo. O ser humano é simbólico e movido por paixões irracionais e instintos racionais, e essa complexidade, embora seja responsável por grandes destruições, é o que também traz todo o colorido e o sentido para a existência humana.
Comentários
Postar um comentário
Se quiser, deixe seu e-mail.