Trevas pós-modernas


Queria escrever algo positivo, mas acho que nunca fui uma pessoa muito positiva, não falo alegremente, não acordo de bom humor e nem acho que alegria o tempo todo seja uma qualidade. O pior é que estamos em um período histórico "trevídico" no qual as pessoas se asseguram de que transformarão tudo com a mente e palavras carinhosas jogadas a torto e a direito. Os seres deste tempo e deste lugar confundem carinho com competência, e por isso fazem escolhas e julgamentos baseados em critérios subjetivos ou de acordo com o que lhes pareça "legal" e "carinhoso". Competência? Ah, o que é isso, ele é gente boa!

Eu não preciso de carinho (não de um atendente de loja, açougueiro, professor, advogado, médico ou qualquer desconhecido ou conhecido que faça parte da minha vida ocupando um papel social provisório) até que essa pessoa se torne alguém que mereça carinho, mas preciso muito de respeito. Preciso que me vejam como um ser humano semelhante, que atendam as minhas necessidades relativas ao contato em questão, com a mesma atenção que qualquer um deve receber, que me permitam entrar onde eu queira, que me recebam respeitosamente, que me ouçam e me falem respeitosamente, e é assim que busco tratar a todos, porque todos merecem respeito. Carinho não é para todos.

Retornando ao tema das trevas, vivo em um planeta onde as pessoas não olham mais para o céu para admirarem as estrelas e pensam que já sabem tudo, que tudo fora descoberto; vivo em um mundo em que as "novas descobertas" são apenas imagens rolando infinita e insignificantemente em telas que causam miopia e atrofia social e mental. Neste mundo, as pessoas estão ficando corcundas e desatentas, não conseguem mais focar em nada que exista ao seu redor; essas pessoas tem a tarefa de registrar momentos falsos de suas vidas falsificadas para tentar arrancar atenção dos outros zumbis e gerar prazer automático. Aqui, também, as pessoas estão longe de quem está longe, e mais longe ainda de quem está perto, pois a comunicação, que antes era feita toda em dez minutos, se desfarela ao longo do dia com mensagens pipocantes e dispersas de tudo e de todos que não nos interessam. Para os que estão próximos, sobram olhares furtivos e fingidos de atenção entrecortados por cliques.

As criaturas deste mundo estão, cada vez, com capacidade cognitiva mais subdesenvolvida; a maioria não consegue se concentrar para ler um texto longo e complexo, mesmo que este tenha apenas uma página, pois tudo parece chato e parado. Contentam-se, todos, com saberes enciclopédicos sobre todas as porcarias da terra e se consideram incríveis, assim como os incríveis "influencers" que não precisaram fazer nada para saberem mais que todos, além de serem muito legais. A fama e a prosperidade nunca pareceram tão fáceis e acessíveis, agora não é necessário nem estudar para chegar ao topo, como antigamente se pregava. Parabéns às mutações do capitalismo, capitando almas com seus valores cada vez mais sofisticados e transformando as bases da meritocracia.

O preço por esses valores e essa transformação nos modos de ser e de viver, pagaremos mais tarde, mas alguns de seus efeitos já podem ser medidos hoje. Não trata-se de uma projeção pessimista de uma pessoa "não alegre", mas de mudanças que já são visíveis hoje, como ruas vazias de crianças, adolescentes com medo de sair de casa, de lidar com outros seres vivos, de problemas de saúde física e mental, problemas de relacionamento com pessoas reais, problemas na capacidade cognitiva, dificuldade de concentração, memória, mudança nos padrões de leitura e de absorção de informação, e por aí vai. Resumindo, nosso interior está se transformando em trevas, ou seja, se existe alma, esta está morrendo por inanição absoluta porque preferimos viver na superfície que é mais fácil e "divertido".

Por estar em mundo sem alma e sem esperanças, é que preciso de cada vez mais respeito, para ver se salvo o que  restou de alma (entenda "alma" sob a teoria que o aprazer). Não preciso de nada falso, palavra falsa, carinho falso, imagem falsa, felicidade falsa. Preciso da verdade, no sentido natural do real, de estar acordada nesse mundo, enquanto eu tenho olhos e todo o meu corpo para senti-lo.


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